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Como prometido, aqui vai a parte final do texto do Ben-Hur sobre o show do Ney Matogrosso aqui em Florianópolis, na última terça-feira. Agradeço, em meu nome e do Ben-Hur, pelos comentários feitos no primeiro post. É muito legal receber um
feedback em blog que não seja somente aqueles "legal o texto, visite meu blog!".
Para quem ficou curioso para ler mais textos do Ben-Hur, aviso que ele não tem blog - ainda. Mas escrevia crônicas semanalmente para o
Jornal da Manhã, de Ponta Grossa-PR, até o início deste mês. Também foi responsável pela criação do saudoso
Grimpa, um jornal folk independente que durou históricas seis edições, e que se constituía de (excelentes) textos autorais sobre temáticas regionais do paraná. Em breve, o Ben-Hur voltará a colaborar aqui no Cena Beatnik, escrevendo sobre o grande Raul Seixas.
INCLASSIFICÁVEIS
AS CANÇÕES DE NEY MATOGROSSO - PARTE 2
por Ben-Hur Demeneck
Mais que uma voz privilegiada, Matogrosso demonstrou o seu conhecimento de toda a mise en scène. De quem sabe calcular a narrativa do espetáculo como se fosse uma ópera, uma combinação de diversas artes com o fio condutor da música. Tudo parece estar milimetricamente espacializado e milesimamente ritmado. O improviso perde todo o palco estudado. Elemento marcante de “Inclassificáveis” é o figurino. Baseado na mitologia ameríndia, principalmente na inca.
O cantor começou com uma segunda pele. Sob os holofotes parecia ter um circuito luminoso sobre o corpo. Ou para ser, mais afeito ao simbolismo proposto – como se fosse réstias de sol em uma superfície d´água. Ocimar Versolato, responsável pela roupa colocou cerca de 40 mil micropaetês na peça, presos à mão. A troca de roupas era toda feita a quente, ao vivo. Sem sair do palco. Com vagar. Por vezes de forma coreografada. Aproveitando para mostrar uma combinação de masculino e feminino com o poder da arte que lhe é conferida. Quer se mostrar o provocador que é com o duplo sentido da provocação. Quer ser provocante.
“Inclassificáveis” é uma referência à de Arnaldo Antunes, presente no repertório. Marcado por uma percussão forte e um ataque de voz poderoso. Trata da identidade étnica brasileira. Um elogio da mestiçagem.
(...)
Que preto, que branco, que índio o quê?
Que branco, que índio, que preto o quê?
Que índio, que preto, que branco o quê?
Que preto branco índio o quê?
Branco índio preto o quê?
Índio preto branco o quê?
Aqui somos mestiços mulatos
Cafuzos pardos mamelucos sararás
Crilouros guaranisseis e judárabes (...)
Seria pouco falar apenas em música nesse espetáculo. Embora seja uma apresentação concentrada nessa linguagem e apareça nos cadernos de cultura marcada por essa etiqueta, a música se transforma num ponto de encontro artístico. Não é só ela a única manifestação. Nos surpreendte até mesmo a pilastra que ocupa a porção direita do palco, diante de Emilio. Enquanto esse músico faz a sua música pelos teclados, Ney vai se encostar uma vez nessa coluna. E ela aparece para nossos olhos. E fica de vez por todas sobre o palco, íntegra.
Os efeitos de luzes dramatizam a interpretação das canções. E há vezes em marcam o grande pano de fundo, atrás do palco. Como em “Veja Bem meu bem” que fica verde, suave e juvenil. Ou ao jogar uma cruz para nos trazer ao pensamento mil e outras imagens. Há muito o que se ver e imaginar durante a apresentação. E a maquiagem vem destacar as expressões. Na rampa de acesso para o teatro, uma seqüência de quadros mostrava um ensaio fotográfico. As listras nas costas eram de um ancestral da terra, dançando para ritualizar com o que havia de sagrado para ele.
O dançarino mostrava esses detalhes depois de despir o seu macacão brilhante, aquela segunda pele. Seguindo a linha da coluna vertebral com aquelas tiras. Chegando aos ombros a divisão dos caminhos. Nas coxas os ornamentos eram em espirais pequenas. Como se percebe, a música amarra o espetáculo, como o texto de uma ópera. Mas são tão integrados os elementos que parecem ser tanto de dança e música. Tanto iluminação e cenário como figurino e maquiagem. Tanto cultura popular e como cultura pop.
Ele desce do palco e passeia diante da primeira fileira. O espetáculo se aproxima do final. A seqüência de músicas faz um crescendo e parece que haverá a explosão do clímax. Indo e vindo, procura o rumo do corredor. Sobe. Com uma certa dificuldade. Procurando espaço para se movimentar. E olhando para um e outro do público. E eis que um senhor aparentando uns 60 anos – e não os 60 de Ney – se levanta com a calma de quem procura ir ao banheiro. E anda com uma desimportância total para a multidão que está nas filas de trás. E se aproxima vagoroso, com sua camisa azul, seu cabelo grisalho. E vai em direção de Ney. E o agarra. Uma verdadeira epifania.
Foi o avesso do que houve na maratona de Atenas. Vanderlei Cordeiro de Lima era Ney Matogrosso e o senhor não o derrubou. O que fez foi interromper uns compassos, o andamento da música. Ney deixou de ser o grande artista para ser o homem comum. E deu uma risada franca, tímida.
O vídeo a seguir antecede a interrupção da maratona de cantor. Quando terminam essas imagens, o senhor estava a alguns passos de fazer sua investida:
(Deu alguns problemas com a postagem do vídeo. Por via das dúvidas, quem não conseguiu olhar ele aqui no blog, aí vai o link direto: http://www.youtube.com/watch?v=FXrt6YkKbFo
EPÍLOGO:
Nunca tinha ido a um show de Ney Matogrosso. Um contato com um repertório rico em diversas influências. E um espetáculo com mil artes. E pelos grupos musicais, uma mistura de gerações. É fantástico poder ouvir um artista com mais de três décadas de carreira interpretar canções atualíssimas. E deixar como presente uma canção como “Divino e Maravilhoso”, que não pude ouvir ser cantada por Gal Costa no festival de 1968. Cheguei mais de uma década depois. E não vou dizer que eu não fiquei impressionado com a força cênica de Matogrosso, com mais idade que a senhora minha mãe e a de outros colegas. E que não pensei nisso. Na história da vida, da passagem. E de ver um grande artista continuar apostando na sua arte.
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