4.16.2008

Inclassificáveis, Ney Matogrosso (2)

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Como prometido, aqui vai a parte final do texto do Ben-Hur sobre o show do Ney Matogrosso aqui em Florianópolis, na última terça-feira. Agradeço, em meu nome e do Ben-Hur, pelos comentários feitos no primeiro post. É muito legal receber um feedback em blog que não seja somente aqueles "legal o texto, visite meu blog!".

Para quem ficou curioso para ler mais textos do Ben-Hur, aviso que ele não tem blog - ainda. Mas escrevia crônicas semanalmente para o Jornal da Manhã, de Ponta Grossa-PR, até o início deste mês. Também foi responsável pela criação do saudoso Grimpa, um jornal folk independente que durou históricas seis edições, e que se constituía de (excelentes) textos autorais sobre temáticas regionais do paraná. Em breve, o Ben-Hur voltará a colaborar aqui no Cena Beatnik, escrevendo sobre o grande Raul Seixas.



INCLASSIFICÁVEIS

AS CANÇÕES DE NEY MATOGROSSO - PARTE 2


por Ben-Hur Demeneck


Mais que uma voz privilegiada, Matogrosso demonstrou o seu conhecimento de toda a mise en scène. De quem sabe calcular a narrativa do espetáculo como se fosse uma ópera, uma combinação de diversas artes com o fio condutor da música. Tudo parece estar milimetricamente espacializado e milesimamente ritmado. O improviso perde todo o palco estudado. Elemento marcante de “Inclassificáveis” é o figurino. Baseado na mitologia ameríndia, principalmente na inca.

O cantor começou com uma segunda pele. Sob os holofotes parecia ter um circuito luminoso sobre o corpo. Ou para ser, mais afeito ao simbolismo proposto – como se fosse réstias de sol em uma superfície d´água. Ocimar Versolato, responsável pela roupa colocou cerca de 40 mil micropaetês na peça, presos à mão. A troca de roupas era toda feita a quente, ao vivo. Sem sair do palco. Com vagar. Por vezes de forma coreografada. Aproveitando para mostrar uma combinação de masculino e feminino com o poder da arte que lhe é conferida. Quer se mostrar o provocador que é com o duplo sentido da provocação. Quer ser provocante.

“Inclassificáveis” é uma referência à de Arnaldo Antunes, presente no repertório. Marcado por uma percussão forte e um ataque de voz poderoso. Trata da identidade étnica brasileira. Um elogio da mestiçagem.

 (...)
Que preto, que branco, que índio o quê?
Que branco, que índio, que preto o quê?
Que índio, que preto, que branco o quê?
Que preto branco índio o quê?
Branco índio preto o quê?
Índio preto branco o quê?
Aqui somos mestiços mulatos
Cafuzos pardos mamelucos sararás
Crilouros guaranisseis e judárabes (...)
 


Seria pouco falar apenas em música nesse espetáculo. Embora seja uma apresentação concentrada nessa linguagem e apareça nos cadernos de cultura marcada por essa etiqueta, a música se transforma num ponto de encontro artístico. Não é só ela a única manifestação. Nos surpreendte até mesmo a pilastra que ocupa a porção direita do palco, diante de Emilio. Enquanto esse músico faz a sua música pelos teclados, Ney vai se encostar uma vez nessa coluna. E ela aparece para nossos olhos. E fica de vez por todas sobre o palco, íntegra.

Os efeitos de luzes dramatizam a interpretação das canções. E há vezes em marcam o grande pano de fundo, atrás do palco. Como em “Veja Bem meu bem” que fica verde, suave e juvenil. Ou ao jogar uma cruz para nos trazer ao pensamento mil e outras imagens. Há muito o que se ver e imaginar durante a apresentação. E a maquiagem vem destacar as expressões. Na rampa de acesso para o teatro, uma seqüência de quadros mostrava um ensaio fotográfico. As listras nas costas eram de um ancestral da terra, dançando para ritualizar com o que havia de sagrado para ele.

O dançarino mostrava esses detalhes depois de despir o seu macacão brilhante, aquela segunda pele. Seguindo a linha da coluna vertebral com aquelas tiras. Chegando aos ombros a divisão dos caminhos. Nas coxas os ornamentos eram em espirais pequenas. Como se percebe, a música amarra o espetáculo, como o texto de uma ópera. Mas são tão integrados os elementos que parecem ser tanto de dança e música. Tanto iluminação e cenário como figurino e maquiagem. Tanto cultura popular e como cultura pop.




Ele desce do palco e passeia diante da primeira fileira. O espetáculo se aproxima do final. A seqüência de músicas faz um crescendo e parece que haverá a explosão do clímax. Indo e vindo, procura o rumo do corredor. Sobe. Com uma certa dificuldade. Procurando espaço para se movimentar. E olhando para um e outro do público. E eis que um senhor aparentando uns 60 anos – e não os 60 de Ney – se levanta com a calma de quem procura ir ao banheiro. E anda com uma desimportância total para a multidão que está nas filas de trás. E se aproxima vagoroso, com sua camisa azul, seu cabelo grisalho. E vai em direção de Ney. E o agarra. Uma verdadeira epifania.

Foi o avesso do que houve na maratona de Atenas. Vanderlei Cordeiro de Lima era Ney Matogrosso e o senhor não o derrubou. O que fez foi interromper uns compassos, o andamento da música. Ney deixou de ser o grande artista para ser o homem comum. E deu uma risada franca, tímida.

O vídeo a seguir antecede a interrupção da maratona de cantor. Quando terminam essas imagens, o senhor estava a alguns passos de fazer sua investida:



(Deu alguns problemas com a postagem do vídeo. Por via das dúvidas, quem não conseguiu olhar ele aqui no blog, aí vai o link direto: http://www.youtube.com/watch?v=FXrt6YkKbFo


EPÍLOGO:

Nunca tinha ido a um show de Ney Matogrosso. Um contato com um repertório rico em diversas influências. E um espetáculo com mil artes. E pelos grupos musicais, uma mistura de gerações. É fantástico poder ouvir um artista com mais de três décadas de carreira interpretar canções atualíssimas. E deixar como presente uma canção como “Divino e Maravilhoso”, que não pude ouvir ser cantada por Gal Costa no festival de 1968. Cheguei mais de uma década depois. E não vou dizer que eu não fiquei impressionado com a força cênica de Matogrosso, com mais idade que a senhora minha mãe e a de outros colegas. E que não pensei nisso. Na história da vida, da passagem. E de ver um grande artista continuar apostando na sua arte.


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7 comentários:

Anônimo disse...

Todo grande artista -e Ney Matogrosso é um dos que resume este termo- tem o direito de transformar o seu ego e a sua sexualidade em um dos assuntos de seu trabalho. E Ney o faz c/ talento. Esse é um dos paradigmas da cultura Pop: a música associada ao comportamento cênico, e que, no caso, visa questionar os limites impostos pela cultura ocidental e seu pensamento estanque.
Como escolheu desta vez um repertório mais pop/rock, Ney se permitiu a liberdade e a provocação que este estilo pode oferecer. Ele jamais faria isso c/ um repertório mais tradicional, como no recital anterior "Canto em qualquer canto".
Ney não é "apenas" um excepcional cantor: é um frontman de primeiríssima linha e um encenador hábil -os espetáculos dirigidos e iluminados por ele falam por si só- e quem vai à um show dele não pode (e acho que nem quer) esperar só música, que aliás, no caso de "Inclassificáveis", é excelente.
Por todas essas razões, fiquei encantado c/ o detalhismo e a lucidez do texto de Ben-Hur, e pela sensibilidade que teve ao perceber que nada do que Ney faz em cena é gratuito ou esconde a qualidade principal do espetáculo: a beleza e a força da música. Sim, o espetáculo é um show para os olhos, mas tbem é um presente p/ os ouvidos. Eu -e acho que 99,9% daquela platéia- vibrei c/ o som de Ney e sua técnica vocal perfeita e sua banda mestiça/rastafari talentosíssima.
Leonardo, ponto pra você ter postado esta linda resenha de Ben-Hur, e espero que venha mais. O cara é um lúcido e precisamos disso. É uma excelente notícia saber que ele continuará a colaborar c/ este blog que a partir deste texto sobre "Inclassificáveis" ganhou um leitor assíduo.
Um abração a todos e obrigado.

Anônimo disse...

Maravilhoso... gostei até mais dessa segunda parte. Adorei algumas expressões que o Ben-Hur usou p/ se referir ao Ney como "figura solar" ou "operística". Bonito, Ben. Elas definem em parte o que é esse artista deslumbrante chamado Ney Matogrosso, que domina o palco c/ habilidade e precisão absolutas. O cara tem quase quarenta anos de carreira (contando c/ o trabalho no teatro) e não se acomoda: investiga, instiga, procura, pesquisa compositores e formas de apresentá-los ao público. Fascinante.
É claroque qdo Ney só canta (só?! rsssss), ele arrasa, afinal tem uma voz divina, dá sempre um banho de técnica e emoção. Mas eu concordo c/ o que Jô Sores disse outro dia, de que qdo Ney se permite à extravagância, ele exibe os múltiplos talentos que tem. Só acrescenta c/ isso, e a música não perde nada.
Que legal a maioria dos leitores desse blog, terem postado comentários inteligentes, sensíveis, sobre este post do Ben-Hur, gostei demais de quase todos. Como o próprio Leonardo comentou, isso é muito raro na blogosfera.
No fundo, acho que o Ney provoca isso: é como se ele "ativasse" o inconsciente do público, e sua música o fizesse pensar, refletir. Eu vejo isso c/ bons olhos, pois diante da mediocridade midiática, um cantor talentoso como ele conseguir chamar tanta atenção, me deixa uma sensação (efêmera, talvez) de que nem tudo está perdido.

Fico na expectativa do texto sobre o Raul, ok.
Beijos para todos
Ellen

Anônimo disse...

Valeu! Valeu a espera pela parte 2. Não gosto muito de narrativas em duas partes, mas essa eu tenho de relevar. Muito linda a matéria do Ben-Hur, soube transmitir muita coisa que eu não conseguiria se tentasse: o show ainda está na minha cabeça, não consigo me desligar daquela figura meio-homem, meio-réptil, meio-pássaro...
Ouço o cd que nem louca, o tempo todo, e me pego surpreendida a cada audição.

Gostei de saber que o Ben voltará a colaborar aqui. Mas concordo com o Caio, acho que ele deveria ter tbem um blog próprio, pois o cara sabe escrever.

Beijão pra todo mundo! Tô feliz!

Felipe Lenhart disse...

Que beleza, Ben-hur - tu que certamente pões os olhos aqui de vez em quando! Parabéns. Um abraço.

Anônimo disse...

Sabe o que eu achei interessante no último cenário do show que o Ben Hur citou? Aquelas aplicações de inúmeras flores multi-coloridas em relevo, pois no bloco final (anterior ao bis) há uma nítida citação 60/70 e à atualidade da contra-cultura:
Em "Veja bem, meu bem", o arranjo é um abolerado/rock, c/ guitarra pesada, em "Coragem, coração", o refrão é totalmente disco e "Divino Maravilhoso", um dos hinos do tropicalismo. Isso mostra a importãncia
e a atualidade do pensamento daquela época e a mensagem que os seus artistas deixaram, a de que é preciso ousar sempre, mas sempre "estar atento e forte".
Ney utilizou-se de tres compositores de gerações e estilos totalmente diferentes, pra traçar uma linha de pensamento absolutamente contemporânea, sem nostalgia. Demais!

Anônimo disse...

Caros, estou muito honrado pelas leituras e pelos comentários sensíveis e informativos. Uma surpresa agradabilíssima receber no blog, observações dignas de registro em revistas, na seção carta dos leitores. Agradeço por tudo que me acrescentarem em suas observações Caio, Slaviero, Ana Lívia, Ellen, Denise, Felipe. Nada melhor para redige ver seu texto provocando percepções e interpretações dos leitores. O detalhismo dos comentários foi um brinde e tanto, a este que vos agradece. Um estímulo a futuros textos e postagens, sem dúvida. E, fazendo o caminho contrário, os estimulo a continuarem os grandes colaboradores que se mostraram, em outros fóruns. Pois aquecem um debate e nos fazem pensar mais e a recuperar informações que perdemos e, que agora, passamos a recuperar pela memória. E a ter uma abordagem inédita. A ter algo muito acima daquilo que só a nossa cabeça solitária jamais conseguirá. Parabéns a vocês meus caros. Por tudo que escreveram. O Afonso, por exemplo, enviou uma mensagem para minha caixa de e-mails elogiando meu texto. QUando o texto dele mostrava um exímio redator.

A fim de fazer pensar, eu vou aproveitar um comentário da Ellen sobre o que minha menção ao RPM. A minha lembrança àquela capa do "Rádio Pirata ao vivo" se deveu ao resultado da foto que eu tirei do show, escura, com umas imagens marcadas pelo holofote ao centro. Talvez eu tenha me expressado ligeiro demais e causei confusão. Em vez de ser um comparação à estética daquela banda ao virtuosismo de Ney a menção foi mais uma recuperação de uma memória minha. Uma capa que eu vi sob meus olhos quando sequer sabia como as ondas dos rádios chegavam a um aparelho. Imagem que recuperei vendo a foto escurecida, já sabendo que aquele foi um espetáculo dirigido por Ney Matogrosso. Esse grande esteta. Embora aquelas músicas não me digam nada hoje. Meu comentário paga pelo preço da licença poética. E agradeço pela sua observação atenta. Embora prefiro esclarecer a que me propunha, visto que não ficou tão claro.

Ao ler esse útlimo texto do Caio, eu fiquei estimulado em contar uma história do Ney que me emocionou, quando procurei saber da sua biografia. Das primeiras experiências profissionais dele foi trabalhar em um laboratório de análise patológicas, fazendo biópsias. Com o tempo ele passou a conviver com crianças, algumas terminais. TInhas vezes que voltava, procurava uma delas e já não estava mais lá e em mais lugar nenhum do mundo. E isso acompanhou um processo de mudança interior muito grande. Dali em diante ele ele percebeu que havia uma urgência na vida, que "as coisas tinham que ser feitas diariamente, a todo momento". Ele que era, em seu dizer, o funcionário "mais estranho" do hospital, - ainda bem - veio a ser Ney Matogrosso. Um incansável criador. Um nome para registrar nossos sentimentos mais raros sob a ação daquela voz extraordinária.

Gostaria de responder a cada um dos comentários, mas por hoje fico por aqui mesmo, ampliando todos os meus cumprimentos a todos os leitores-colaboradores.

Um grande abraço. Mantemos o contato. Ben-Hur


OBS: respondendo uma questão que se colocou. Se eu tenho ou não blog. Ainda não. Por enquanto publico nos amigos, como aqui. Recentemente no www.1cronicapordia.blogspot.com, do jornalista Felipe Lenhart (Florianópolis, SC), participando com uma crônica. E, em breve, para www.cabruuum.blogspot.com, do jornalista Augusto Paim (Porto Alegre/Santa Maria, RS). Essa colaboração terá como tema o cartunista argentino Fontanarrosa e seu personagem Inodoro Pereyra. E,aqui, no Cena Beatnik, será publicada uma matéria especial sobre Raul Seixas. Daqui a alguns meses.

Anônimo disse...

...eu não sou mulher de chorar fácil. Mas esse lindo comentário de Ben-Hur sobre a relação de Ney com as crianças terminais, e o processo de transformação que gerou esse ser de luz que é este belo cantor, me deixou com os olhos cheios d'agua... estou realmente emocionada com a sensibilidade de Ben e de (quase) todos que postaram aqui. Coisa boa saber que existe uma moçada tão informada e com tanto bom gosto!
Parabéns pra todos!!!!